Recordam-se do “Ti” Luís Tareso? Quem não de lembra, de entre os que com ele conviveram?
Tinha um comportamento especial, daqueles que o vulgo distingue como “castiço” ou “típico”, o gesto nervoso, de movimento apressado em passo miúdo, bem adequado à pequenez física da sua figura.
Sacristão, por mester, diariamente, cumpria, com todo o zelo e rigor, as tarefas que a função lhe exigia, desde as práticas do culto religioso, ao tocar do sino, fosse nas Avé Marias diárias, fosse nos anúncios das práticas litúrgicas, ou nos dolorosos e tristes toques a finados.
Apreciava-se-lhe a atitude. E mais se apreciava quanto o Sr. Luís tinha, pelos bens da Igreja, uma entrega às suas defesa e conservação. De facto, era um homem verdadeiramente talhado para a função que o destino lhe talhara: ser sacristão.
Ora, na Semana Santa, a imagem do Senhor dos Aflitos, de estrutura articulada, era trasladada da Igreja do Convento, onde residia o ano inteiro, para a Matriz. A imagem era tida como muito valiosa e, por tão valiosamente avaliada, criou-se o mito que até era de marfim.
O transporte fazia-se a cargo de quatro homens que, com uma espécie de padiola, carregavam o corpo do agonizado Cristo. Cuidadosamente e com todo o zelo empenhavam-se nesta tão compenetrada missão. Só que um dia, já lá vão mais de sessenta anos, o piso molhado de uma chuvada vertida nas pedras irregulares e escorregadias da rua direita, já nem longe do Adro, fez escorregar as tamancas de um deles. E pumba! O consequente trambolhão e a imagem do Senhor a sofrer, em desamparo, o embate das duras pedras da calçada. E eis que se lhe desarticulam peças. Braços e pernas, cada um para seu lado, e até houve quem dissesse que a cabeça de Cristo se descolou do próprio pescoço. Um cenário confrangedor.
E de tão confrangedor e dramático que os olhos de algum pessimismo do Ti Tareso viram para além do que na verdade acontecera. À mera desarticulação de partes do todo, que era o Corpo do Senhor dos Aflitos, o Sr. Luís teve como que uma alucinação e não é que viu a santa imagem estilhaçada em pedaços?
Oh, Deus! Ei-lo, em alvoroço, a irromper Praça dentro, em gritos alucinantes, mãos a apertar a cabeça, a bradar a quem o quisesse ouvir: “Ai que desgraça! Ai que acabaram de partir o Nosso Senhorzinho feito de marfinzinho! Ai que desgraça! Ai que acabaram de partir o Nosso Senhorzinho feito de marfinzinho!”
De quando em quando, na Igreja do Convento, quedo-me em deslumbre à imagem, sem quebrados e bem inteirinha, do Senhor dos Aflitos. E c’um raio! Então não é que, ainda outro dia, o doloroso rosto do Senhor me esboçou um sorriso, em evocação a esta história do “Ti Luís Tareso”?!
Nuno Espinal