As noites quentes convidam à brisa que cá fora nos ameniza o corpo acalorado. Na subida pr’á capela de S. Sebastião, vou encontrar o Sr. Emerciano, que já carrega uns oitenta anos, sempre somados no espaço que se confinou entre as idas da casa a fazenda, ou, no seu fardo de ganha pão, quando cantoneiro da Câmara, em sítios que nunca transpuseram a jurisdição concelhia.
De quando em quando uns passeios organizados localmente. E vibra quando nos narra as suas mega viagens a Monsanto, ao Minho, ou a Fátima.
Conversámos, ontem, em noite de abafado calor. O perigo dos fogos, as regas que os campos reclamam e outras coisas mais. Lá está a sua “tsf” estrategicamente situada e sintonizada na única emissora que parece conhecer, o “Rádio Clube de Arganil”.
-Aquilo por Lisboa anda assanhado. Ouvi nas notícias. Assaltam comboios e praias, diz-me o Sr. Emerciano.
-Pior que o Texas, confirmo eu.
-Como?
-Pior que a trupe do João Brandão…
-Ah, o João Brandão. Um bandido do pior. Já ouvi histórias. Mas aqui em Vila Cova havia quem lhe fizesse frente…Com os de cá ele não se metia.
Pouco importa desmentir. É o reino dos mitos, as histórias que se contam ditas e conformadas ao sabor dos gostos dos que as dizem e dos que as ouvem.
E neste desfilar de conversa sou levado às sábias e belas palavras de Saramago na sua “Carta a Josefa”:
/.../Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. /.../
Nuno Espinal