Há quem se lembre, e ainda são alguns, da figura do regedor. Exercia gratuita e obrigatoriamente as suas funções que eram, sobretudo, de polícia municipal e geral e representava e coadjuvava na freguesia o presidente da Câmara, de quem directamente dependia.
Dos regedores havidos em Vila Cova recordo um, que nesse cargo, preencheu os meus tempos de infância e juventude. Era o Sr. Francisco Fernandes também conhecido, entre o povo, por “Chico da Guarda”. “Chico da Guarda” porquê? Porque era descendente de um feitor dos Condes da Guarda, que vindo daquela cidade por cá ficou e deixou raízes.
O “Chico da Guarda” era um homem curioso, muito apessoado e que lá ia tentando impor o respeito pretensamente devido às suas funções.
Fruto da sociabilidade e valores da época, tinha uma visão muito hierarquizada da sociedade, que se reflectia nos tratamentos devidos, consoante o escalonamento a cada um atribuído em termos de classe social.
Um dia houve em que o Sr. “Chico da Guarda” recolhia, em resultado das suas funções, um abaixo-assinado, por uma qualquer razão que os meus poucos anos na altura não me deixaram compreender.
A lista de assinaturas já ia extensa quando chegou a vez de minha mãe, na altura de férias, em Vila Cova, que aderiu ao abaixo-assinado. Escreveu seu nome, Adelaide Espinal, e assinou.
Tudo parecia resolvido, quando o nosso amigo regedor, depois de uma pausa e com ar circunspecto, em que concentrou em si olhares e expectações, rematou:
-Peço-lhe toda a desculpa, mas há aqui uma incorrecção minha senhora.
-????
-Antes de seu nome terá que escrever Srª Dª. Sim, digo bem, Srª Dª Adelaide Espinal.
Lembro-me da surpresa de minha mãe, que logo retorquiu.
-Ó Sr. Francisco isso é que não. Não sou eu que me vou tratar a mim própria por Srª Dª. Esse tratamento, quem o receber, recebe-o sempre de outros.
-Não minha senhora, peço-lhe desculpa. As minhas razões de regedor dizem-me que na lista o seu nome tem de ser acompanhado por Senhora Dona.
A conversa, com argumentos de parte a parte, prolongou-se. Sei que minha mãe não acedeu. Foi então que o Sr. Francisco, não se querendo dar por vencido, pegou na caneta e por o seu próprio punho escreveu antes do nome o tal Srª Dª.
E com ar triunfante, papel na mão erguido, exclamou:
-Agora sim, está certo. Já posso prosseguir com o abaixo-assinado! Srª Dª Adelaide Espinal. Nem podia ser de outra maneira. Eu também sou regedor. Regedor Francisco Fernandes. É que quem é Dona é Dona. Dona Adelaide Espinal!
Nuno Espinal