De tal modo lhes recolhi a essência que ainda hoje, e já é passado meio século, nos amenos pores de sol de verão, lhes oiço as toadas. As “Toadas das Trindades”.
Eram um momento único, de reverência, de recolhimento, de serenidade.
O “Luís Tarezo”, com mestria e engenho, tocava as “Avé Marias” dia a dia, ano após ano sem uma recusa, sem uma falha. Só que um dia, imponderáveis surgidos forçaram-lhe o afastamento da terra, qualquer coisa como uns quatro ou cinco dias seguidos de ausência.
Claro, foi substituído. Quem o substituiu de modo algum me recordo e para o caso nem tão pouco importa. O que recordo, e recordo bem, é que, como recurso, me vi na ensarilhada tarefa de ser eu a ter de tocar uma única vez as “Avé Marias”. Eu mesmo, vejam bem, voluntário decidido, com os meus doze a treze anos, para aí.
Avisado que era, o Sr. Prior ter-me-á questionado:” Achas-te capaz? Olha que só dás as badaladas na altura em que o sol se estiver mesmo a pôr. Vê lá, estás a tempo de recusar… “. Qual recusar! “Recusar nunca, Sr. Prior, nem pensar. Esteja tranquilo, vai tudo correr bem”.
Senti-me o maior, muito ufano, prestes a uma grande afirmação pessoal. Mas, há que confessá-lo, se grande era a honraria não menor era o pânico. Pois é!
Nem sei bem o que se passou, mas o certo é que até se me turvou a mioleira… talvez fosse o medo, o pavor da responsabilidade, presumo. Então não é que, ainda o sol distava do horizonte, para aí umas duas horas, não ripo do badalo e, pimba, lá vão as “Avé Marias”?
Foi a escandaleira na vila. Os comentários não paravam: Oh! Oh! Que raio é isto? Que palhaçada é esta? Quem foi o engraçado? Olha, acabou cedo o dia de trabalho! Deve ser muito amigo dos trabalhadores, só pode ser!
Foi uma incriminação generalizada, um acusativo de monta. Mas, alto aí! Aquela de ser amigo dos trabalhadores, dessa, sinceramente, gostei. É que gostei mesmo! Ser tido como amigo dos trabalhadores!? Era novito, eu sei, mas aquilo soou-me bem. No meio de tamanha desgraça restava-me esse consolo. O consolo de me saber amigo. E hoje até dá para pensar...Quem sabe? É que, anos mais tarde vim a ser sindicalista. E esta?! Será que o Altíssimo, lá bem do Alto, nos seus desígnios, já me indicava caminhos futuros? Seria Deus a escrever direito por linhas tortas?
Nuno Espinal