Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se alguma houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde encanto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.
Luís de Camões
Um novo ano escolar começou com as tradições e contradições costumeiras.
Quem andou nessas mudanças 40 anos, conhece-as bem, por dentro e por fora, muito embora os tempos fossem outros.
Pois eram. Senão vejamos:
Uma tarde quente de férias em Vila Cova, passeava eu junto às Tílias quando oiço:
- Ó Manuel, ó Joaquim, ó João, depressa, venham cá! Vem aí o Sr. Professor…”.
E as crianças lá foram a correr com os seus pezitos descalços até à Fonte de Stª Teresa, onde as mães lhes lavavam a cara.
Sinal de respeito, de consideração, de reconhecimento para com aquele que lhes preparava os filhos para o mistério que é a Vida, alertando-os para a descoberta do Mundo e do Conhecimento.
Achei bonito o gesto tanto que, ainda adolescente, o gravei no meu “cofre de memórias”.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.
Vila Cova já não tem Escola.
Também o facto está gravado no compartimento negativo das minhas memórias.
E como as memórias são como as cerejas - saltam em catadupa umas atrás das outras – logo me lembrei do Xico.
Não o via há cerca de 40 anos. Tive o grande, o enorme prazer de estar há pouco tempo com ele e com outros seus companheiros, meus alunos, num almoço. Deixara-os ainda meninos, reencontrei-os homens, barrigudos, de barbas, de bigodes, pais de família.
Não fora o Rui Rodrigues elucidar-me e não os teria reconhecido, pelo menos alguns.
Foi um reencontro de saudade. Encheram-me de flores e de orgulho.
No decorrer do almoço fui-me apercebendo de que as sementes que eu lançava tinham dado frutos, excelentes frutos – quase todos têm habilitação académica superior e hoje, pais, tentam educar os filhos nos valores em que foram criados, valores de integridade, de verticalidade.
Mas porque falo especialmente do Xico?
É que o Xico, filho de família numerosa e paupérrima, era das poucas crianças que iam à Escola descalços.
Nem por isso deixava, nunca, de cumprir os seus deveres. Trabalhou, lutou. Tem o proveito: é advogado. Por mérito próprio. Sem ajuda de ninguém. Não fora a solidariedade dos vizinhos, a fome, em casa dos pais do Xico, seria ainda maior. Eu acredito que é das grandes necessidades por que passam que nascem os grandes homens. O facilitismo só leva à preguiça, à inércia.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.
A Escola perdeu a sua função milenar de preparar para a Vida. O ensino é centrado apenas nos interesses imediatos dos alunos, afastado da cultura, sem tempo para pensar, para desenvolver o espírito crítico.
O grande compositor Schumann afirmava:
“Aqueles que são ignorantes são fáceis de conduzir”.
Mudaram-se os tempos mas as vontades deveriam ter permanecido íntegras aos seus princípios.