Normalmente, quando estou entregue a uma tarefa que me interessa, abstraio-me dos sons irritantes que me rodeiam, o que é óptimo porque o silêncio hoje é um luxo que se paga bem caro com a insonorização das habitações e dos electrodomésticos, se não queremos ser bombardeados com os ruídos de trânsito, das obras, da música impingida das televisões ou dos concertos que nos pregam perto de casa.
Lisboa perdeu a sua musicalidade.
Logo pela manhã, a cidade acordava ao som melodioso dos pregões.
As varinas, donairosas, equilibrando as suas típicas canastras à cabeça, apregoavam a sardinha:
- “ó viva da costa!”;
Os vendedores ambulantes:
- “fava rica!”;
- “ó queijo saloio!” (queijinhos fresquíssimos que nunca mais me passaram, nem iguais nem parecidos, pelo gargalo);
- “olhó cabaz de morangos/são de Sintra e de Colares” (agora nem nestas localidades se enxergam);
- “aqui trago um sal amigo/quem quer azeitona nova?”;
- “funileiro à porta!” (nas panelas e tachos com furos eram postos pingos de solda);
- “ferro velho!” (nesta sociedade de desperdício deita-se tudo no lixo);
- “pitrolino!” (o azeite e o petróleo eram vendidos à porta numa pequena carroça puxada a muares);
- O único que perdura no meu bairro é o “amolador de tesouras e navalhas” com a música tão peculiar da sua gaita de beiços.
Estas cantilenas (porque os pregões eram cantados e não gritados) eram música para os nossos ouvidos.
Calaram-se para sempre, diz-se que fruto do progresso.
E o stress a que as pessoas estão sujeitas, não conta?
Existem ainda pequenos oásis de silêncio.
Um deles é Vila Cova, terrinha que nem no mapa consta nem é do conhecimento dos veraneantes que se deslocam de Coja a Avô ou vice-versa – como se qualquer força telúrica a tivesse engolido – mas que os seus fiéis admiradores procuram para se acolherem no reconfortante regaço da natureza, suspensos no seu silêncio, aconchegados na ausência do tempo, como se o mundo tivesse parado.
É possível escutar o som embalador dos ralos e das cigarras, o murmúrio tranquilo das águas do rio deslizando pelo caneiro, a beleza da paisagem verdejante envolvente.
Ficamos ali vulneráveis perante algo que não podemos dizer o que é, que não vemos mas que sentimos a cada sopro de vento, de cada vez que poisamos o olhar lá longe, na paisagem.
E também temos mais tempo – porque as atracções não abundam – para nos embrenharmos na leitura de um livro.
Parafraseando a filósofa alemã Hannah Arendt: “A palavra escrita penetra-nos como se conversássemos em surdez com a humanidade inteira. É que, quando lemos, estamos em lugar nenhum, longe da multidão, longe do mundo, longe de nós mesmos”.