
Era bem rechonchudo, saliente de ventre, redondo nas formas do corpo e nos aros de uns óculos que lhe escorregavam nariz abaixo e que ele, amiúde, quase ao jeito de tique, ia ajustando. O estrabismo evidente e toda a sua morfologia presenteavam-lhe uma certa diferença, um certo carisma. Tinha sido barbeiro e a arte de fígaro cumpriu-a em Lisboa, em grande parte da vida. Na hora de poisar para sempre a tesoura e navalha rumou, sem demoras, à sua Vila Cova, à sua amada Vila Cova. Emergiu-lhe então outra arte, a de bem saber escrever e falar. Popularizou uma frase, com que estampava os seus títulos das crónicas que escrevia para a “Comarca de Arganil”: “Quando os Vilacovenses querem…”.
Claro, os mais velhos já perceberam, refiro-me ao Sr. António Leitão.
Nesses tempos, nos Verões, anos sessenta, Vila Cova fervilhava de gente, em especial em Agosto. Os veraneantes juntavam-se nas suas tertúlias, muitas delas à volta de uma farta mesa, nas célebres e famosas patuscadas. Ora, meus amigos, acontecimento que fosse, desde que gente juntasse, sem discurso é que não passava. E as patuscadas eram acontecimento a requerer toda a pompa do discurso. E, quando tal, era o Sr. Leitão o orador por excelência. E na altura certa e oportuna havia sempre alguém a dizer: “Silêncio, vai falar o Sr. Leitão”. Umas palmas para aviso, garfos e colheres a tilintar…”por favor, silêncio”. E, silêncio feito, soerguia o Sr. Leitão todo o seu peso, a dar peso ao momento, ar muito solene, e lá desenvolvia, arrebatada e emotivamente o discurso.
Ora, na força do Verão, as patuscadas tinham quase sempre, por local, nas suas fugas ao calor, ou a Srª da Graça, no Convento, ou sítios frescos da casa Kessler, ou as lojas da vivenda da Srª Dª Amélia, à saída da vila, em direcção a Avô. Consciente do “nome de família” destas casas, o Sr. Leitão iniciava, por vezes, os seus emotivos discursos com esta marcante tirada: “Minhas senhoras e meus senhores, nesta nóbile e distinta casa…”. E logo vozes em aquiescência e aplauso, “muito bem, muito bem, apoiado, apoiado…”.
Porém, um dia o local destes gastronómicos eventos mudou radicalmente de assento. Um dia de morna temperatura e de peixe do rio em ementa. Local escolhido, bem junto ao Alva, em terra tida de ninguém. Tudo correu normalmente. Prato saborosamente deglutido, copo (e copos) gostosamente sorvido, conversas, chalaças, risadas e, no fechar do pano, o discurso. Todo o envolvimento habitual que nem o local beliscou. E então não é que o Sr. Leitão, na provável euforia de um transbordante copito de vinho, iniciou a sua falação com a arrebatadora frase: “Nesta nóbile e distinta casa…”.
Gafe hilariante, é claro. Mas, o cómico não se ficou por aqui. Não é que houve, também, quem, com a maior solenidade e convicção (e não foi só um, juro) se tenha manifestado com um concordante “muito bem, apoiado, muito bem…”.
Nuno Espinal